“Há mar e mar, há ir e voltar” é uma das expressões populares portuguesas que mais me fascina. Realmente, o meu interesse começa na sua génese: “há mar e mar, há ir e voltar” nasceu como slogan do Instituto de Socorro a Náufragos, vindo directamente da criatividade do poeta Alexandre O’Neill que na altura ganhava a vida como publicitário. Pois bem: haverá frase que melhor resuma o inevitável fascínio luso perante o oceano? Junção de palavras que melhor ilustre como precisamos dele, quase tanto como precisamos de voltar? Existirá mais exímia forma de falar simultaneamente do mar como entidade quase infinita e das nossas curiosidades, necessidades e saudades como emoções sem fim? Que axioma melhor sugere a atracção pelo abismo que é a água, essa coisa que nos assegura ser tão fácil viver como morrer?

O masoquismo. Dói-nos a cabeça, pois o sol raiou em cima dela, incessante durante as horas não recomendadas pelos dermatologistas mais zelosos. A pele arde e fica escaldada, faz comichão e cai por estar à mercê da luz tropical reflectida nas pratas do mar. A certeza das rugas mais cedo do que o normal. A probabilidade de desenvolver cancro a crescer exponencialmente, ou os “sinais de uma vida bem vivida” como ouvi dizer em sotaque australiano. No meio da água, a letargia da desidratação. Por causa do sal temos os olhos encarnados e a língua áspera como cortiça. Sentimos a enxaqueca latejante nas têmporas, na nuca e na testa até os próprios pensamentos perderem lucidez. A barriga fica arranhada por roçar na borracha da prancha durante longos períodos. A virilha assada pela fibra sintética do fato de banho, os dedos dos pés calejadíssimos por causa das barbatanas e o caminhar entre os corais pontiagudos como navalhas até terra firme, sentido os músculos fartos de nadar implorando piedade da única forma que conseguem: doendo.

A onda enorme rebentando mesmo à nossa frente, massa de água como muralha entalando-nos sem misericórdia e empurrando-nos para o fundo do mar. Não conseguir acabar a onda que corremos, ser embrulhados pela força da espuma e sentir a amargura da impotência de quem só se queria divertir nas ondas. Perder o fôlego até se nos espremerem os brônquios. Cair da prancha, raspar com as costas em rochas afiadas e as rochas afiadas a arrancarem-nos bocados de carne. Tratar as feridas com álcool, lima ou tintura de iodo Chinesa. Ser rasgado por coral vivo, encarar a possibilidade de ele crescer dentro de nós e o iodo chinês, ardente insuportável, como única e mandatária prevenção.

No fim de tarde tenebroso, o ataque do tubarão tigre que nos confundiu com um peixe. A história do surfista norte-americano que perdeu a vida em Karandibor, a cinco quilómetros dos nossos bungalows.

Só se sabe que surfava sozinho, que as ondas tinham quatro metros de altura e que a prancha chegou quebrada a terra. Suspeita-se que terá ficado preso numa gruta subaquática. Conspira-se que terá batido com a cabeça numa pedra, perdido os sentidos e morrido afogado. Espera-se que tenha ido em paz. Procura-se conforto na ideia de uma morte fazendo o que se gosta. O cadáver inchado que dá à costa, quase irreconhecível, três dias depois. A namorada não abandonando a areia durante todo o período e retornando aos Estados Unidos para explicar o sucedido. Aos amigos, aos conhecidos, aos pais e a si mesma, vezes sem conta sem nunca perceber o sentido verdadeiro de morrer pelo surf.

Aconteceu-lhe a ele, aconteceu-lhe a ela e na realidade pode acontecer a qualquer um. É assim, o mar: com exemplos ensinando-nos a humildade, como um castigo prévio à ousadia, como um crescer enorme ao fazer-nos encolher. António Variações, um morto que ainda canta como gosta, põe-nos a pensar em como “o corpo é que paga, deixa-o pagar, deixa-o pagar, se tu estás a gostar”. Estás na Indonésia e foi para isto que vieste. Faz o que ele diz, usa-te até te gastares, magoa-te como mais te der prazer e salga-te até nem te conseguires provar. Afinal de contas, és livre.

Contudo, apesar dos perigos descritos acima, um mês pleno a viver para o surf é excelente para o corpo e ainda mais excelente para o espírito. A sensação que se apodera de nós ao darmos por encerrada uma sessão de surf, a soma das sensações que experimentamos no mar e o simples estar na água durante tanto tempo será das melhores que o ser humano pode contrair. E apanhar boas ondas, mais do que numa obsessão, torna-se numa necessidade.

Daí acordar duas horas antes do sol nascer, mas sem uma nesga de sono. Daí não conseguir pregar olho na noite anterior à madrugada que poderá ter ondas boas. Daí enfrentar o frio, o stress e as inflações da gasolina nos invernos da Europa. Daí faltar à escola, ao trabalho e aos compromissos amorosos. Daí sentirmo-nos sujos, propriamente imundos quando queremos surfar, mas as obrigações não nos deixam. Daí comprar filmes, livros ou revistas e contemplar insaciavelmente as vagas que quebram em pontos inacessíveis em actos masturbatórios, porque a natureza parece feita luxúria e as ondas feitas diversão de pureza pornográfica.

Daí passar um ano a pensar nas semanas reservadas para férias de surf. Daí juntar dinheiro e planear pormenores, sofrer de antecipação e convocar sempre os amigos, pois a alegria multiplica-se quando se divide o mar.

Daí a noção de comunidade, a irmandade de milhares de homens ou mulheres felizes e unidos por uma linguagem ou uma forma de ser o oceano. Daí a “mente sã, corpo são” elevados a outra expressão e a pica, a vontade que nos motiva, a tornar-se quase tão fundamental como a fome ou a sede de todos os seres vivos. E depois, quando a satisfazemos passadas umas horas em busca da perfeição, o repouso, a graça plena flutuando em cada gota de água… armazenada no nosso organismo.

1 – É uma questão física:
Imagine-se o cansaço saboreado após um pouco de desporto, nem que seja uma corrida ou até uma caminhada por um parque. A leveza na máquina que somos, limpa e útil depois de cumprir o seu trabalho. As proteínas justas a viajar no sangue, o ácidoce a escorrer nos músculos, as articulações oleadas e a adrenalina que nos fez gritar de entusiasmo para agora nos proporcionar a melhor ressaca do mundo. De facto, a questão física é uma questão mental, porque cada onda que fazemos é um acto de auto-superação, uma vitória na batalha contra a Natureza e um gesto de preenchimento incomparável: somos nós contra o mar, logo, somos nós contra o mundo.

2 – Basta juntar água:
Ou nadar para não pensar em nada. O Zen húmido. A hidroterapia sem horários nem maestros. O relaxamento total, a pura fluidez que nos parece curar de qualquer mal. A flexibilidade transparente, o estado líquido a fazer-nos esquecer de tudo e aquele cheiro, tão familiar porque vem directamente da Natureza e bafeja quem goste de mergulhar na praia, desfrutá-la por umas horas e abandoná-la mais feliz.

3 – As contas que Neptuno fez:
Para terminar (e esta é a parte que só quem surfa percebe) contemplemos também a mística sensação de bênção. O milagre egoísta, o privilégio de quem dispõe dos meios para gozar o acaso e a conexão máxima com o ambiente.

No oceano, na casa da vida, a intuitiva conspiração dos elementos: as pressões e as depressões atmosféricas, o vento que sopra furioso em alto-mar para gerar energia, a energia propagada até chegar às zonas costeiras para embater num planalto subaquático e elevar-se como uma árvore curva. A lua que puxa a terra, a água que vai atrás dela e cria as marés. A relação perfeita entre a temperatura do ar terrestre e do ar marítimo, a deslocação de ar entre os dois ares soprando gentil, para as vagas erguerem toda a sua circunferência com a maciez do azeite.

Bênção porque tudo isto acontece antes que aquela onda, a melhor onda do dia (há sempre uma melhor do dia) venha ter connosco, presentear-nos com a festa da sua morte e fazer-nos pensar que todo o processo tem na nossa alegria a sua razão de existir.

Apanhamos a melhor onda do dia (há sempre uma melhor do dia), descemo-la e tiramos-lhes as medidas. Entramos no tubo, penetramos a intimidade do seu movimento, ouvimos o rugir da água, geramos inércia e velocidade. O tempo pára e o pensamento também. Meditamos em adrenalina, conectados ao máximo com o globo, na verdade tanto quanto parece ser possível num espaço de tempo tão curto. Saímos do tubo, paramos aos poucos e sorrimos. Acabámos de experimentar mais uma injecção de mundo em estado bruto, adrenalina e energias positivas directamente na medula da nossa satisfação.

Estamos na Indonésia, a água é quente e escandalosamente incolor. Estamos na Indonésia e, além de serem as mais excelentes do globo, as ondas são excelentes todos os dias, com uma consistência que parece capricho. Absorvemos tudo isto com muito mais de cinco sentidos. Quando olhamos para terra só vemos verde, quando olhamos para o céu, azul limpo. Ouvimos o baloiçar do mar, sentimos na pele a água que cheira a limpo e provamos o sal que tempera toda a nossa existência. E nos quatro segundos da onda, a felicidade durou para sempre. Sentado na sua prancha está um amigo, um irmão que escolhemos e ele está a berrar porque gostou de ver. Tem olhos e braços tão abertos quanto consegue. A melhor onda do meu dia foi a melhor onda que ele viu. E se tudo isto, toda esta partilha, toda esta entrega e confiança, toda esta presença não é estar vivo então não sei o que é.

Bagus Ombak, diz o nosso amigo Indonésio que aprende a surfar com a prancha que alguém lhe ofereceu na época passada. “Boa onda!”, percebo eu com muito mais de cinco sentidos – sabendo que estamos a falar exactamente da mesma coisa.


Texto: Luís Brito | Facebook