* Artigo originalmente publicado a 18/02/2015.
Que raio estou aqui a fazer? Eram onze e um quarto da manhã e tinha acabado de sofrer um wipeout enquanto praticava snowboard. Estava então em Val d’Isère, nos Alpes franceses, e o dia tinha amanhecido brilhante, com o Sol lá no alto a acentuar o contraste entre o azul celeste e o branco prístino da neve nos picos à minha volta. É curiosa a sensação que se tem por vezes nestes locais; o branco suave da neve apoia- se, camada sobre camada, nos declives da montanha, arredondando-lhe as formas; a paisagem torna-se menos familiar, quase lunar, convidando-nos ao silêncio.
Esta estância de altitude, próxima da fronteira com Itália, é muito conhecida pela largura das suas pistas de ski, pela paisagem de cortar a respiração, as lojas e espaços de diversão noturna e pelo ambiente cool e descontraído que durante alguns meses ao ano milhares de amantes de desportos de neve trazem para a região.
Das mazelas da queda, resultado de uma trajetória mal calculada numa descida com curva rápida à direita, resultou uma rotura parcial do ligamento do joelho direito e, sinceramente, nos instantes que se seguiram pensei que tinha sido bem pior. Acabei por me levantar e recompor aos poucos, que estas coisas nunca são fáceis, especialmente quando se está a 2700m de altitude e sem nenhum táxi por perto para nos tirar dali de imediato.
Nos meses que se seguiram, a recuperação foi lenta e dolorosa, com pouca flexibilidade no joelho e mobilidade reduzida. E nada foi mais constrangedor que passar alguns meses sem poder usar o joelho, retido na montanha com aquela sensação de claustrofobia a que os ingleses chamam de cabin fever e que pode ser realmente insuportável.
Valeram os amigos, os bocados que passámos a beber espumante barato e a tirar fotografias a bolinhas de sabão, quase até ao pôr-do-sol, com aquele branco lunar como cenário natural das nossas brincadeiras. Acima de tudo, valeu a percepção renovada sobre as coisas que a dado momento nos faltam e que aprendemos a valorizar. Um dia por vezes, um mês, um ano; noutras situações, uma vida inteira. Faltava-me o mar, e nunca antes isso tinha sido tão óbvio.
Recordo-me dos momentos da primeira meninez, os verões em família passados em Espinho: aquelas tardes mágicas de marés vivas em que da praia olhava o mar e via os guerreiros locais fazerem-se às ondas. Inverts, air spins, viam-se altas manobras já naquela altura. De vez em quando lá saia uma manobra aérea mais progressiva e imediatamente a seguir o rider olhava para a areia, como se quisesse dizer: “Eh pá, alguém viu o voo que acabei de mandar?” E estava certo, porque havia na areia muita gente que pasmava – miúdos e graúdos – com o surf vanguardista que os locais praticavam. Para mim, a ânsia de arranjar um boogie e entrar lá para dentro crescia. Era assim no início dos anos 90.
Mais tarde vieram as surfadas com os locais, na Ericeira e Santa Cruz. Para alguém que vinha do interior do país, estando ali só de passagem, era espantoso ver como os nativos te acolhiam no seio do grupo. E de repente já eras mais um no meio deles. Mais espantoso ainda, para um forasteiro como eu, era descobrir a relação de alguns deles com o mar. Não havia hora sem surfar, como se isso fosse o suporte vital da comunidade e o suporte individual de cada um ali presente, que a cada dia tem de se renovar, quase ritualmente. Existia uma profunda relação de respeito entre as pessoas, surfistas e bodyboarders, entre estas e o mar, não importando se estivessem dias bons, com sets ordenados a entrar com tamanho, ou dias fracos, com vento de todos os quadrantes.
Foram assim passados alguns momentos verdadeiramente memoráveis. Os primeiros pores-do-sol dentro de água… Espírito e camaradagem quando algum “desconhecido” te diz, “vai tu nessa onda que eu agora estou cansado”, e que são cada vez mais raros de encontrar; muitas gargalhadas e paródia, com a história do vizinho do amigo que mandou vir as pranchas da Austrália e acabou por comprar mais caro depois de pagar as taxas da alfândega, ou quando, no meio do silêncio que busca no horizonte as ondas que tardam a entrar, alguém grita de lá de trás: “Ó Fred, mete ficha para ver se dá crédito!”
Sentia falta de tudo isto: sentia falta de coisas simples como ligar a TV e ver os riders nacionais a ripar ao som de Rage Against the Machine, NOFX, Pennywise, Russian Circles; da épica rivalidade Stewart vs. Tâmega; de ver surfar prodígios como Andre Botha ou predestinados como Pierre-Louis Costes; de ver o eterno Manuel Centeno conquistar os primeiros campeonatos nacionais. E lamento, acima de tudo, que o Bodyboard como desporto não esteja disponível para todos, nos mesmos canais e meios, com a simplicidade de outros desportos de ondas. Resta-nos o bodyboard, enquanto tivermos forças para o praticar.
Das pessoas que conheci, daquilo que aprendemos com os momentos passados dentro de água, pelo desafio aos elementos recorrendo aos mais básicos instintos de sobrevivência – tão latentes na sociedade hipercontrolada em que vivemos -, dou ênfase à conexão e sensação de bem-estar com o mundo, como resultado da experiência. É isso que nos retempera, nos faz querer regressar.
“A vontade sossega pois não há necessidade dela”, escrevia Fernando Pessoa no Livro do Desassossego. Mais ao estilo autobiográfico que heteronímico, facilmente percebemos que existe mais vida que imaginação no excerto que aqui transcrevo. Pois que seja isso, que o bodyboard que todos praticamos dependa exclusivamente da nossa vontade. Não de algo que desejamos fazer um dia, uma semana, um mês, mas de algo a que aspiramos, dia após dia, ano após ano, até ao fim.
Perdoa rei Neptuno que tanto tempo andámos de costas voltadas.
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